Os derrotados nunca puderam contar a história do mundo. A narrativa sempre coube aos vencedores, dominadores e bárbaros. Mas, mesmo nos regimes mais autoritários e violentos, as vítimas têm a oportunidade de deixar sua mensagem para as gerações futuras. É a partir dessa reflexão que se desenvolve o drama “Onde está Liz dos Santos?”, que fez elogiada temporada no ano passado e agora faz duas sessões no Sesi Duque de Caxias (27 e 28/10, às 20h). A peça foi escrita pela estreante Beatriz Malcher durante as atividades da 6ª turma do Núcleo de Dramaturgia Firjan SESI, que contou com aulas virtuais, em 2020, sob a coordenação do diretor e dramaturgo Diogo Liberano. Dirigido por Tatiana Tiburcio, o espetáculo conta uma história de perseguições, desaparecimentos e submissões que apresenta paralelos com a realidade brasileira. O espetáculo tem apoio institucional do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, através do Edital Retomada Cultural RJ2.
A trama se desenrola em uma cidade dominada por um grupo de milicianos, onde a posse de armas está liberada. Maria das Graças busca sua filha, Liz, que desapareceu após ser levada à delegacia local. A busca expõe uma trama de violência que envolve o Estado, a alta burguesia agrária e a igreja. Paralelamente, o pastor da cidade se confronta com o seu papel ambíguo neste cenário. Para escrever a dramaturgia, a autora se inspirou em entrevistas que leu com pessoas que moram em zonas de milícia e em um episódio que ouviu de uma senhora na porta do banco: ela perdeu um filho, casa e negócio depois que a família deixou de pagar pelos serviços cobrados pelo grupo clandestino. No elenco do espetáculo, estão Anderson Guimarães, Clarissa Menezes, Fernanda Dias/Simone Cerqueira, João Mabial, Julio Wenceslau e Luciana Lopes.
“Estamos em um momento de repensar as narrativas históricas e recuperar a memória das vítimas”, avalia Beatriz. “Li bastante sobre milícia para construir a trama, mas a peça parte de um ambiente dominado por esse grupo para refletir sobre as posturas autoritárias, violentas e fascistas que fazem parte da história do Brasil e do mundo. De tempos em tempos, essas posturas ficam mais afloradas. Li um livro que falava, por exemplo, sobre a continuação dos métodos usados pela ditadura militar nos métodos usados pela milícia”, acrescenta.
A narrativa também é contada a partir de obras, no estilo lambe-lambe, deixadas pela personagem-título, uma artista desaparecida que, a partir do eu trabalho, fazia denúncias políticas. “Eu queria trabalhar com indivíduos desaparecidos, mas que tivessem voz. Eu não queria fazer como o sistema e apagar essas pessoas do mapa”, observa a dramaturga. “Decidi usar colagens feitas por mim mesma, que serão projetadas em cena, para mostrar a obra de uma artista sem recursos, que está tentando ganhar a vida em outra cidade. Colei olhos de pessoas reais, que estão mortas ou têm paradeiro desconhecido. Enquanto existir gente que lembre dessas pessoas e que passem suas mensagens adiante, elas não estarão derrotadas. Elas ficarão de olhos abertos”, completa.
O diretor e dramaturgo Diogo Liberano lembra do processo de estudos e escrita de dramaturgia durante as aulas da 6ª turma do Núcleo de Dramaturgia Firjan SESI. “Beatriz teve um processo extremamente corajoso. Ela partiu de um incômodo muito grande com questões urgentes do país, como a de uma possível liberação de armas para civis, para construir situações, personagens e ações, que pudessem revelar facetas diversas sobre os problemas do Brasil de hoje”, elogia. “A dramaturgia dela não parece ter sido construída para informar dados nem para citar casos de nossa realidade. Ao contrário, parece ter sido feita para ultrapassar o real e nos fazer pensar sobre ele por meio de personagens e embates diversos. Sua ficção, assim, mais do que mentira ou verdade, é um trabalho que faz perguntas determinantes sobre as violências que nosso país está vivendo”, destaca.
Para contar essa história, a diretora Tatiana Tiburcio focou no trabalho do ator, dando continuidade às suas experiências profissionais como atriz na Companhia dos Comuns, e no Amok Teatro. “Trabalhamos com a cena mais crua possível, no sentido de exigir mais dos atores, sem dar a eles apoios e bengalas. Trabalhamos com o ator em sua máxima expressividade para falar do retorno desse extremismo conservador que a gente já experimentou em ditaduras pelo mundo. Estamos vendo isso tudo voltar com uma carga muito assustadora”, frisa Tatiana que, durante a pandemia, se destacou como diretora (ao lado de Renato Farias) do espetáculo “Insubmissa Negra Voz – Conceição Evaristo” e como atriz no especial “Falas Negras”, da Rede Globo, no qual viveu a doméstica Mirtes de Souza, cujo filho, Miguel, de 5 anos, morreu ao cair de um prédio de luxo no Recife. Ela ganhou o prêmio de Melhor Atriz pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) pela atuação. Na equipe criativa de “Onde está Liz dos Santos?” também estão Julio Wenceslau (assistente de direção), Jon Thomaz (iluminação), Carlos Alberto Nunes (direção de arte), Beà Ayòóla (direção musical) e Diogo Liberano (coordenação do projeto).